Uma brincadeira inocente que terminou em um acidente grave. Em um domingo de agosto, Maurício Martins Jr., 41 anos, reuniu parte da família para visitar um terreno que possui em Itapecerica da Serra, na região metropolitana de São Paulo. A ideia era desfrutar do espaço em meio à natureza, enquanto trabalhavam na limpeza do lote. Tudo estava indo bem, até que ele decidiu se pendurar em um cipó preso a uma árvore para relembrar sua meninice. Mas a peripécia não terminou bem: ele acabou encostando em um grupo de lagartas do gênero Lonomia – única capaz de ocasionar acidentes graves e até levar à morte.
“Segurei firme [no cipó] e cheguei a me balançar um pouco. Apoiei a mão direita no tronco para ganhar mais impulso e, na hora, senti uma pinicação forte e um incômodo imediato”, lembra o técnico em TI. Ao conferir a superfície da árvore ele verificou que se aglomeravam no local diversas lagartas, com o que pareciam ser espinhos ao longo do corpo. “Em cerca de 20 minutos comecei a sentir uma dor de cabeça chata”, conta. O incômodo, inclusive, fez com que o programa em família fosse encerrado mais cedo do que o programado.
Apesar da dor de cabeça persistente e da sensação de letargia, Maurício seguiu com sua rotina no início da semana. Foi trabalhar normalmente e visitou clientes em diversas regiões da capital paulista, por vezes dirigindo sua moto ou o carro da empresa. “Na terça de noite, percebi que um hematoma que havia surgido na minha coxa esquerda, ainda no domingo, tinha aumentado bastante e outro começava a aparecer na perna direita.” Em um primeiro momento, o paulistano não relacionou as manchas ao contato com as lagartas. “A mão direita, que teve contato direto com o bicho, estava bem inchada e a pele apresentava um aspecto grosseiro”, recorda.
Foi só após muita insistência da esposa e do chefe que Maurício procurou atendimento médico, já no final da tarde de quarta – mais de 72 horas depois do incidente. Por conta da curta distância (ele é morador da Vila Sônia, bairro da zona oeste de São Paulo que fica próximo ao Butantan), decidiu buscar assistência no Hospital Vital Brazil, especializado no atendimento a pacientes picados por animais peçonhentos e localizado nas dependências do Instituto.
Após relatar o caso na unidade de saúde, o técnico teve os sinais vitais avaliados e amostras de sangue e urina coletadas. “Quando um paciente que teve contato com lagarta relata o aparecimento de manchas pelo corpo, existe um forte indicativo de que esteja acontecendo um quadro de envenenamento por Lonomia”, afirma o médico do Hospital Vital Brazil Jefferson Murad. Os exames de Maurício apontaram que ele estava com um baixo índice de fibrinogênio, um tipo de proteína que contribui para o processo de coagulação do sangue – o que explicava o surgimento das “manchas roxas”.
Soro antilonômico é único tratamento – É por meio da quebra de seus espinhos que as lagartas do gênero Lonomia liberam seu veneno poderoso. Capaz de provocar quase que imediatamente uma dermatite urticante no local de contato, a toxina também altera a coagulação sanguínea e pode desencadear uma crise hemorrágica – quando sangramentos espontâneos surgem em diversas partes do corpo. A gravidade do acidente vai depender da quantidade de veneno inoculado, da intensidade do contato com o animal e, claro, do tempo de resposta aos primeiros sinais de envenenamento.
“O quadro do Maurício foi classificado como moderado. Os exames apontaram que o índice de fibrinogênio dele estava em 30, quando o normal é algo em torno de 180 a 250”, explica Jefferson Murad. Em casos como este, recomenda-se a aplicação de cinco frascos-ampolas de soro antilonômico. O produto, que é distribuído gratuitamente por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) e foi desenvolvido de forma pioneira pelo Instituto em meados da década de 1990, é até hoje o único capaz de neutralizar a ação do veneno da Lonomia – em 2023, o Butantan enviou mais de 5 mil ampolas ao Ministério da Saúde.
Poucas horas após a administração do antiveneno, o paciente começou a sentir os primeiros sinais de melhora: a dor de cabeça cessou, assim como a sensação de letargia. Mesmo com a aparente recuperação, Maurício precisou ficar internado. A alta veio no dia seguinte, ao final da tarde de quinta, quando finalmente o nível de fibrinogênio começou a normalizar e os hematomas diminuíram. “Jamais imaginaria que pudesse evoluir para algo grave. Relutei em vir ao hospital porque imaginei que o tratamento seria simples, com uma pomada e doses de antialérgico”, pontua o acidentado.
Loteria do azar – As Lonomias são um gênero de lagarta da família Saturniidae. Apresentam cerca de cinco centímetros de comprimento, coloração marrom esverdeada, listras longitudinais castanho escuras e padrões brancos em forma de U por todo o corpo, além de inúmeros espinhos verde claros que lembram o formato de pequenos pinheiros, sendo comum encontrá-las aglomeradas no tronco de árvores – principalmente as frutíferas.
De acordo com o último Boletim Epidemiológico sobre acidentes causados por lagartas peçonhentas no Brasil, 4.323 casos de acidente com Lonomia foram registrados no país de 2019 a 2023 – a maioria nas regiões Sul e Sudeste. Apesar das lagartas do gênero estarem presentes em todo o território nacional, diversos motivos contribuem para uma maior incidência de casos nessas localizações, como o clima mais ameno, a maior densidade populacional e a perda de habitat primário causada pela ação humana.
O caso de Maurício chama atenção por ter acontecido “fora de época”, uma vez que o acidente aconteceu em agosto e as intercorrências com Lonomia no Sudeste são muito mais frequentes durante os meses de verão – fatores como temperatura e volume de chuvas influenciam o ciclo de desenvolvimento das lagartas. “Os dias mais quentes que vivenciamos neste inverno e o fato do terreno ser bem úmido, já que está perto de um lago, podem ter contribuído para a eclosão dos ovos”, explica o tecnologista de produção de Venenos e Antivenenos do Butantan, Alexandre Veloso Ribeiro. O biólogo foi responsável por conduzir uma vistoria na área – em um espaço de pouco mais de mil metros quadrados, apenas 15 espécimes foram encontrados.
Essa ameaça à saúde é potencializada pelo desconhecimento da população em relação aos perigos que um envenenamento causado pelo animal pode acarretar. “As pessoas tendem a achar que um acidente com lagarta não é nada, que só vai arder um pouco. Na maioria das vezes, é justamente isso que vai acontecer, mas é aí que mora o perigo de se negligenciar um caso com potencial de agravos”, observa o médico do Hospital Vital Brazil Jefferson Murad.
Na eventualidade de contato com qualquer tipo de lagarta, o profissional recomenda lavar bem o local atingido com água corrente e sabão neutro. Caso exista resquícios de cerdas do bicho, utilize uma gaze ou pano limpo para auxiliar na remoção. Já para aliviar a dor, a indicação é realizar compressas de gelo. Se for possível e não houver nenhum tipo de risco, tire uma foto da lagarta e siga para a unidade de saúde mais próxima para uma avaliação do quadro. “Pessoas que tiveram contato com lagarta e observaram o surgimento de manchas pelo corpo devem procurar auxílio médico imediato”, reforça o profissional.
Uma lição que Maurício aprendeu bem. “Para mim, lagarta era tudo igual. Daqui para frente, vou evitar encostar no tronco das árvores. Até porque, elas estão no seu habitat natural; ali, eu é que sou o invasor”, afirma. O técnico também reforça a importância do uso de equipamento de proteção individual (EPI) ao trabalhar na limpeza do terreno, como botas e luvas adequadas, e a necessidade de repassar aos outros moradores da região as informações que recebeu. “Temos muitas crianças aqui. Com tudo o que aprendi, posso reduzir as chances de outras pessoas enfrentarem a mesma situação que passei”, completa.